Considerações quanto a Hermenêutica Fundamentalista

Hermenêutica fundamentalista
Introdução

Neste texto que segue contextualizaremos historicamente, de maneira sucinta, a origem da hermenêutica fundamentalista, notaremos que ela surge com força depois da teologia liberal e muito em consequência desta. Apresentaremos as principais característica da teologia fundamentalista e faremos uma crítica quanto a problemática de sua ideologia que “dispensa” o diálogo.

Antes abordaremos rapidamente o termo e o sentido de fundamento, mostrando a base e a força da palavra que tem uma origem bem remota e com sentido próprio, interessante passarmos por este termo para mostrarmos o que pretendemos logo à frente.

Entramos no termo fundamentalismo e apresentamos sua origem e consequências quanto a esta hermenêutica. Notaremos que o fundamentalismo chega a propor teses que deveriam ser seguidas e que seriam bases, ou seja, fundamentos para a fé. Perceberemos a problemática da “Sola Scriptura” e a interpretação literalista da Bíblia feita por essa teologia.

Veremos que esse movimento conservador radical impossibilita a abertura para o mundo e para o diálogo, estando, portanto, fechada em sua concha em um ostracismo cego. Uma de nossas críticas será exatamente esse fechamento em si e para o mundo que não enxergam e não percebem em seu movimento e, dinâmico em novos conhecimentos.

Fundamento

De antemão torna-se necessário lembrar que o fundamentalismo está presente em vários aspectos da vida humana e, portanto, também está nos diversos saberes. Existem fundamentalistas de um lado e de outro, tanto nos pensamentos ditos liberais quanto nos mais conservadores. O mesmo ocorre na política onde facilmente se verificam fundamentalistas na linha da chamada “direita” quanto na da “esquerda”. E não poderia ser diferente na teologia, os radicais normalmente se encontram nos polos, tanto nos conservadores quanto nos liberais. Mas o que é ser fundamentalista?

Antes vejamos o que significa “fundamento”, segundo Japiassu e Marcondes.

Na linguagem corrente, designa aquilo sobre o qual repousa alguma coisa: outrora   se falava dos “fundamentos de uma casa”, mas hoje se fala de suas “fundações”.   A filosofia utiliza esse termo para designar aquilo sobre o qual repousa, de direito, certo conhecimento. Assim, o fundamento de um conjunto de proposições é a primeira verdade sobre a qual elas são deduzidas. (2006. p. 117)

Podemos observar então que fundamento é algo forte, algo que podemos chamar de uma base, e uma estrutura pode se moldar acima desta. Neste sentido, se tivermos como fundamento o nosso mestre Jesus e os Seus ensinamentos, estamos bem alicerçados, o problema são os “fundamentos” nas “construções em areia” como o nosso mestre nos diz em uma de suas parábolas, segundo Mateus (Mt 7, 24-27)

24Assim, todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. 25Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. 26Por outro lado, todo aquele que ouve essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado a um homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. 27Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande sua ruína!”

Portanto a palavra fundamento em si já tem uma força especial. O problema começa com o “ismo”, principalmente quando tem o uso radical que passou a ter quanto ao tema em questão: fundamentalismo.

Fundamentalismo

O termo é muito antigo, mas no sentido da teologia, especificamente a cristã, ele vem durante a modernidade e teve como uma de suas causas o surgimento de uma teologia liberal, que por sua vez surge na “renascença”. Esta teologia liberal procurou “se liberar” ou libertar das tradições mais ortodoxas e se adequar, se assim poderíamos dizer, a uma nova linguagem que surgia no mundo ocidental pautada na ciência nascente naquele século XVI. No renascimento tivemos um entusiasmo nunca visto até então quanto ao uso da razão em especial, ou seja, o racionalismo, a razão passa a dominar as fontes do conhecimento.

Dessa maneira a teologia que, sempre deve buscar o diálogo, se adapta ao seu tempo de então. Devemos notar que isso ocorre desde a origem do Cristianismo, quando então a teologia se apoiou na filosofia a fim de poder dialogar, mostrar e até “demonstrar” sua mensagem. São Paulo é um dos grandes exemplos deste argumento na antiguidade do cristianismo nascente, sem esquecer tantos outros teólogos e pais da igreja como Santo Agostinho que usou muito de Platão ou Tomas de Aquino que se utilizou de Aristóteles.

Bem, a parti desta premissa, ou seja, uma teologia que buscava o diálogo com as ciências nascentes, surge a teologia liberal. Esta buscava uma nova hermenêutica, ou seja, uma releitura da mensagem bíblica adequando-se e possibilitando um novo diálogo com seus novos interlocutores e agora no seu novo terreno, seu novo chão. A busca pelo sentido da palavra, no caso das escrituras, é o que fizeram todos os estudiosos quanto aos conhecimentos exegéticos e hermenêuticos de cada tempo, inclusive o mestre Jesus quando fez uma releitura para o seu tempo.

Voltando ao fundamentalismo, ele surge pouco depois no século XIX, principalmente com teólogos protestantes conservadores, calvinistas, no Seminário Teológico de Princeton (USA). E posteriormente o fundamentalismo foi crescendo no século XX. Assim passamos a ter duas grandes linhas teológicas/hermenêuticas: os liberais e os fundamentalistas. Aquela buscava o diálogo com o novo, esta procurava o conservadorismo.

Os fundamentalistas-conservadores ou conservadores-fundamentalistas iam contra os novos valores da modernidade racionalista, liberal, iluminista e humanista. Desta maneira o novo pensamento antropocentrista em que o homem está no centro, era de certa maneira refutado pelos conservadores fundamentalistas que pretendiam manter um teocentrismo absolutista. Em outras palavras: Deus no centro integralmente. Claro que isso não seria tão problemático se fosse feito com diálogo e abertura para o entendimento. Mas não foi e não é o que ocorre nessa teologia.

American Bible League (ABL)

O movimento conservador fundou a American Bible League (ABL), em 1902 e pouco tempo depois entre os anos de 1910 e 1915 publicou os 12 pontos que, segundo eles, eram fundamentos para a fé, e tinham o objetivo de contrapor-se às ameaças das ideias “modernista”, podemos sintetizar alguns deles assim: a inspiração verbal da Escritura e sua inerrância; divindade de Cristo; a concepção virginal; a expiação vicária de Jesus Cristo; a ressurreição de Cristo e a volta gloriosa para o julgamento.

Entre estes pontos acima, temos um, como exemplo, que passa a ser problemático a partir do momento que a hermenêutica fundamentalista procura ler a bíblia de maneira literal, e considerando “sua inerrância”. Dessa maneira a literalidade sem considerar o tempo de sua escrita e os homens que a escreveram (ainda que inspirados) eram homens e como tais tinham o seu modo de ver os fatos por eles narrados, isso passa a ser um problema sério, os lugares hermenêuticos de sentido (autor, texto e leitor) não podem deixar de ser considerados. Conforme comenta Rocha

A primeira tendência protestante que opera uma verbalização da revelação, certamente a que o faz de maneira mais radical, é a que se desenvolveu na ortodoxia protestante e, que encontrou sua maior expressão no fundamentalismo teológico. Essa tendência pode ser sintetizada, no que diz respeito à sua concepção de revelação, pela máxima “a Bíblia é a palavra de Deus”. (2010, p.353)

Os cristãos entendem que a bíblia é a palavra de Deus, mas isso não significa que ela não precise ser interpretada e entendida através de um conjunto de premissas como: procurar entender o que o autor (ser humano) pretendia dizer; procurar entender também o tempo em que foi escrita, que cultura permeava aquele tempo; procurar entender que a linguagem e a maneira de escrita daquele tempo do autor era outra; e por fim que precisa ser lida e relida de acordo com o tempo em que estiver o leitor atual.

Críticas à proposta hermenêutica Fundamentalista (ou Fundamentalismo)

Como comentamos no breve desenvolvimento deste tema acima, qualquer pessoa, entidade ou narrativa com viés fundamentalista é problemático. Nesse sentido uma das críticas que podemos fazer a hermenêutica fundamentalista é a forma radical que esta busca na interpretação da bíblia ou seja em sua literalidade. Outro problema é estar fechada em si mesma e no seu grupo, “excomungando” os que pensam diferente, dessa maneira o diálogo passa muito longe dessa teologia e ideologia. Outro problema ainda com relação à falta do diálogo é que eles estão fechados para o nosso tempo e, portanto, não conversam com a ciência e nem com outros interlocutores do seu tempo, não o faziam tanto em sua origem, como com o nosso tempo, dispensando assim todas as formas de saberes.  Conforme expresso por Abbagnano, o fundamentalismo

(…) é um posicionamento religioso que se caracteriza pela referência intransigente aos fundamentos da confissão professada; comporta uma interpretação literária dos textos sagrados, a recusa global a inovação e a ênfase no sentimento de pertencer ao grupo religioso a que se adere. (2007, p.552)

Como se pode observar o fundamentalismo busca em si e no seu grupo a única forma de ver o mundo e entendê-lo, se é que eles conseguem ver e entender… sem diálogo com o mundo não dá para entender o mundo. Dessa maneira, no meu modo de pensar, o maior problema desta “hermenêutica” é estar fechada em um ostracismo problemático, de maneira a não conseguir ver o lado de fora.

Ainda nessa argumentação crítica, podemos considerar o que está exposto na Pontifícia Comissão Bíblica apud Kaefer

(…) ao se recusar em aceitar o caráter histórico da revelação bíblica, o fundamentalismo é incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. Ele foge da estreita relação do divino e do humano, problema já presente no princípio do cristianismo e já confrontado nos primeiros concílios da Igreja. Tem dificuldade em aceitar o histórico, por outro lado, torna histórico aquilo que não é pretensão de historicidade. Vale o princípio da “Sola Scriptura” (2014, p.128).

Vemos assim a desconsideração com o caráter histórico da revelação bíblica, além de esquecer ou desconhecer o ser humano como parte deste processo. Por fim, conforme já lembramos antes, a problemática da “Sola Scriptura”, ou seja, somente a escritura basta! até aí não seria tanto problema, se houvesse ao menos o diálogo nessa teologia, no entanto, se houvesse diálogo já não seria solo a scriptura.

Considerações Finais

Mais do que nunca em nossa contemporaneidade chamada pós-modernidade ou hipermodernidade além de outras nomenclaturas que se dá a este momento em que vivemos, é mais do que necessário o diálogo, há uma infinidade de ciências e modos de pensar o saber, por isso, pensar em radicalismos nessa época está totalmente fora de possibilidade, isso poderíamos até dizer é uma aberração em nosso tempo.

Precisamos lembrar que historicamente, de sua maneira, o cristianismo buscou dialogar com o seu tempo e com a forma de ser de sua época, obvio que nem sempre isso foi ou é simples. No entanto, como mencionei neste texto anteriormente, a teologia buscou um dos conhecimentos mais em pauta em sua origem que foi a filosofia. Mesmo que a problemática do dualismo platônico possa ter sido embrenhada no cristianismo foi uma leitura, acredito, importante na sua época e através deste diálogo puderam transmitir a mensagem que pretendiam, a boa nova, o evangelho.

Por isso gostaria de relembrar a necessidade do diálogo com todos e, em todas as formas de saberes da humanidade. Precisamos entender também que em cada nova época haverá novas maneiras de se obter o “conhecimento”, novos saberes sempre surgirão e necessitamos acompanhá-los. Por fim, não podemos esquecer que somente somos seres humanos e construímo-nos e nos desenvolvemos como humanos dessa maneira. A nossa fôrma é esta: o diálogo. De outra maneira não seriámos o que somos. O fechamento no ostracismo nos cega e, portanto, não enxergamos o outro, o diferente. Conforme Rocha,

O resultado desse fechamento e restrição é a ascensão de instâncias dominadoras de sentido que operam a partir do racionalismo, tanto na perspectiva da ordotoxia/fundamentalismo (onde o racionalismo sustenta a apologética), quanto da teologia liberal e sua abordagem criticista (onde o racionalismo sustenta o criticismo). (2010, p.361)

Considerando o exposto, concluímos que todo radicalismo e fundamentalismo é de fato problemático, tanto quando esquecemos o autor e seu contexto, quanto quando somos fechados atrás do texto. Imprescindível, portanto, se faz entender o leitor e sua época. Por fim, não podemos esquecer o Ser e o sentido de Ser.

E então o que você pensa do Fundamentalismo, pode ter algo de positivo? 
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Abraço, Benito Pepe

Bibliografia e Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.

CROATTO, José Severino. Hermenêutica Bíblica. Disponível em: https://afya.instructure.com/courses/81035/pages/midiateca?module_item_id=3542558. Acessado em 02/11/2023

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

KAEFER, José Ademar. Hermenêutica bíblica: refazendo
caminhos
. Estudos de Religião, v. 28, n. 1. 115-134. jan.-jun. 2014.

LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Fundamentalismo: Escritura e Teologia entre fé e razão. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/18282/18282.PDF. acesso em 31/10/2023

ROCHA, Alessandro. Teologia, hermenêutica e teoria literária.
Interdisciplinaridade na teologia da revelação
. Atualidade Teológica, PUC-
Rio. Ano XIV nº 36, setembro a dezembro/2010.

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